Nos últimos meses, a discussão sobre o teto de gastos ganhou grande destaque no noticiário econômico nacional.
O mecanismo fiscal que limita o gasto do governo já era fonte de controvérsias desde a sua aprovação, há quase quatro anos, e tornou-se uma disputa política interna do governo diante do impacto econômico da pandemia de Covid-19.
Criado para conter o crescimento da dívida pública, o teto de gastos é alvo de alguns setores do governo que defendem mais investimentos da União para recuperar o país da crise causada pelo coronavírus.
Por outro lado, há integrantes que priorizam o equilíbrio fiscal como caminho para a retomada da economia no médio e longo prazo.
Indice
Em resumo, o teto de gastos limita o crescimento dos gastos públicos ao Orçamento do ano anterior ajustado pela inflação oficial.
A regra foi criada durante o governo Michel Temer através da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 95, aprovada pelo Congresso em dezembro de 2016, e entrou em vigor no ano seguinte.
Mais especificamente, a PEC do Teto de Gastos prevê que:
Além disso, a PEC exclui algumas despesas públicas do cálculo do teto. São elas:
Em outras palavras, o teto de gastos equivale ao valor máximo que o governo pode gastar no ano, excetuando-se as despesas listadas acima.
Por exemplo: o teto em 2019 foi de R$ 1,407 trilhão. Dada a leitura da inflação de 3,4% em junho daquele ano, o teto em 2020 foi calculado em R$ 1,454 trilhão.
O mecanismo fiscal de controle de gastos foi criado como tentativa de frear o crescimento acelerado da dívida pública nos últimos anos.
Para compreender o cenário atual das finanças públicas, é necessário esclarecer os conceitos de déficit primário e superávit primário.
O superávit ocorre quando as receitas totais do governo — cuja fonte principal são as arrecadações de impostos — superam os gastos totais.
Do contrário, se os gastos públicos superam a arrecadação, fala-se em déficit. O termo “primário” significa que a conta não inclui o pagamento dos juros da dívida.
Atualmente, o Brasil vive o sexto ano consecutivo de déficit primário.
Em 2014, quando foi registrado o primeiro ano de déficit, a dívida bruta correspondia a cerca de 50% do PIB; para 2020, o Ministério da Economia projeta o indicador a 96% do PIB, com alta de mais de 20 pontos percentuais devido aos gastos contra a pandemia.
O déficit primário acumulado de janeiro a setembro deste ano já supera R$ 677 bilhões.
A dívida pública cresce conforme o país investe em obras públicas, infraestrutura, indústria, insumos ou programas de assistência social, por exemplo.
Tudo isso gera gastos que precisam ser financiados por empréstimos junto aos bancos ou emissão de títulos, mas a arrecadação do governo não tem sido suficiente para quitar estas dívidas.
Desta forma, a PEC do Teto de Gastos foi a saída encontrada pelo governo e pelo Congresso para impedir um crescimento desproporcional dos gastos públicos até que a situação fiscal do país esteja sob controle.
LEIA MAIS | Quanto custa investir na Warren: entenda por que os custos são menores
Antes de avaliar os argumentos contra e a favor da manutenção do teto de gastos, é importante ressaltar que a discussão não gira em torno dos gastos diretamente contra a pandemia da Covid-19, e sim com a recuperação econômica pós-pandemia.
Segundo o Portal da Transparência, a União já destinou mais de R$ 400 bilhões a medidas para conter a pandemia, incluindo compra de medicamentos, investimentos em vacinas, estímulos a empresas, ampliação de leitos em hospitais e o programa de auxílio emergencial.
Para liberar estes recursos sem descumprir o teto de gastos, o governo e o Congresso articularam a criação do chamado “Orçamento de Guerra” — uma espécie de orçamento paralelo destinado especificamente às ações contra o coronavírus.
Dessa forma, a União conseguiu permissão para se endividar mais sem cometer crimes de responsabilidade fiscal ou prejudicar o pagamento de salários e juros da dívida, por exemplo.
Contudo, o impacto econômico da crise sanitária deve se estender por anos, mesmo após o controle da pandemia.
Além disso, mesmo fora do Orçamento “tradicional”, os empréstimos tomados para combater a Covid-19 aprofundaram o quadro de endividamento do Estado brasileiro e devem ser incluídos no planejamento econômico do governo.
Diante da perspectiva de uma crise prolongada após a pandemia do coronavírus, criou-se um impasse dentro da equipe econômica do governo.
De um lado, há integrantes que defendem a manutenção do teto de gastos e o plano de equilíbrio fiscal a longo prazo; do outro, estão aqueles que propõem investimentos públicos imediatos para reaquecer a economia.
Entre os defensores do ajuste fiscal, a posição é liderada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes.
Para ele, o caminho para a retomada não é estourar o teto de gastos, mas avançar na agenda de reformas liberais proposta já no início do governo.
O projeto de Guedes para arrecadar recursos é destravar no Congresso as reformas administrativa e tributária e a privatização de estatais, como os Correios.
Na outra ponta, está o time capitaneado pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
A proposta de Marinho é que o governo invista em finalizar obras inacabadas, principalmente nos setores de saneamento básico e infraestrutura, de forma a gerar empregos e aumentar a produtividade do país.
Para isso, seria necessário flexibilizar o limite imposto pela PEC do Teto de Gastos.
Até o momento, a posição favorecida pelo presidente Jair Bolsonaro tem sido a de manter o teto de gastos inalterado.
Entretanto, há possibilidade de que os objetivos políticos do governo possam interferir sobre a agenda econômica — por exemplo, o auxílio emergencial gerou efeito positivo sobre a popularidade do presidente, e já existe o debate no Planalto sobre aumentar a verba de programas assistencialistas como o Bolsa Família.
A discussão sobre o teto de gastos está intimamente relacionada a dois fatores que exercem forte influência sobre o mercado financeiro: incerteza econômica e instabilidade política.
Para investidores do mercado financeiro, o equilíbrio fiscal do governo é um dos pilares de um ambiente propício aos negócios.
O risco de que um país perca o controle sobre as próprias contas está entre os maiores “repelentes” de investimentos, principalmente no âmbito da atração de capital estrangeiro, pois cria inseguranças sobre a rentabilidade de aplicar dinheiro naquela economia.
Esta busca por um ambiente seguro para o mercado financeiro é um dos nortes da agenda econômica defendida por Guedes, o que justifica sua defesa irredutível da manutenção do teto de gastos.
Atualmente, o rating do Brasil — ou seja, sua classificação internacional de risco de “calote” — é avaliado como “BB-” pelas agências Fitch e Standard & Poor’s, abaixo das notas de Rússia e Índia, por exemplo.
Na esfera política, o desgaste causado pelo debate sobre o teto de gastos é mais um fator que aprofunda a percepção interna e externa de instabilidade no Brasil.
Ambos ministros envolvidos diretamente na discussão, além de assessores e do próprio presidente, vêm travando embates agressivos e dando declarações controversas à imprensa.
Em entrevistas, Guedes chegou a dizer que não apoia “ministros fura-teto”, enquanto Marinho declarou ironicamente que o governo “tem uma faca cravada no olho e se preocupa com um cisco”.
Diante da temperatura elevada e da falta de previsibilidade sobre a regra, o mercado já começa a precificar um possível rompimento do teto de gastos em 2021.
Um cenário avaliado é o de que, considerando a chance de maior risco aos investimentos, o governo seja forçado a elevar a taxa básica de juros, a taxa Selic, o que reduziria a oferta de crédito no país e elevaria os juros pagos pelo governo na emissão de dívida.
LEIA MAIS | Taxa de risco Brasil: entenda como é medido o risco-país
Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, não havia no horizonte qualquer perspectiva de uma crise sanitária e econômica tão profunda quanto a pandemia da Covid-19.
A disparada dos gastos públicos contra a doença e o impacto econômico não foram fenômenos restritos ao Brasil — mesmo países com histórico de austeridade fiscal foram obrigados a gastar reservas e contrair dívidas.
Diante do quadro brasileiro de alto desemprego, fuga de capital estrangeiro e endividamento das famílias, é virtualmente inviável que as contas públicas sejam equilibradas somente por meio de arrecadação.
As exportações brasileiras de matéria-prima também foram fortemente impactadas pela pandemia, uma vez que a crise causou retração na produção da indústria global.
A solução defendida pelo Ministério da Economia através de reformas estruturais visa ao ajuste fiscal a médio e longo prazo, e não sustenta uma retomada significativa no curto prazo.
Além disso, tanto a PEC da reforma administrativa quanto as diversas propostas de reforma tributária encontram-se travadas no Congresso, sem perspectiva de avanço no futuro próximo.
Tampouco é viável, no panorama econômico atual, buscar socorro emergencial de órgãos internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI).
Contrair dívida em moeda estrangeira em meio à rápida desvalorização do real elevaria ainda mais o risco de default brasileiro, e as sucessivas moratórias da Argentina são um exemplo próximo das consequências de apostar alto em empréstimos internacionais.
A discussão sobre o teto de gastos ainda deve se estender e ter reviravoltas nas próximas semanas, uma vez que o Orçamento Federal para 2021 ainda parece longe de ser aprovado.
A agenda política de Bolsonaro voltada à reeleição em 2022 vem prejudicando mais ainda o debate, dados os sinais contraditórios do governo sobre programas sociais sem financiamento certo e a possibilidade de um novo imposto nos moldes da antiga CPMF.
Desta forma, torna-se cada vez menos provável o cenário de manutenção do teto de gastos em 2021.
Não há perspectiva de qualquer melhora no ajuste fiscal ou aumento da arrecadação no futuro próximo, e a economia brasileira precisará de alguma forma de estímulo para se recuperar da pandemia antes de estudar qualquer hipótese de equilíbrio fiscal.
Estar por dentro de tudo que acontece no cenário econômico é fundamental para a saúde de seus investimentos. Assine a Warren Pills e receba toda semana um conteúdo inovador da Warren na sua caixa de entrada.