Por dentro do mercado

Seu cérebro de homem das cavernas está sabotando sua carteira?

As finanças comportamentais mostram que não somos máquinas racionais: nosso cérebro usa atalhos (heurísticas) que podem sabotar investimentos.

Publicado por
Jurandir Sell

Tenho muito mais medo de viajar de avião do que de carro, embora saiba que o risco por quilômetro percorrido em avião seja muito menor do que em automóvel.

Felizmente consigo superar esse medo, mas ele permanece; não desaparece. Procuro sempre levar em conta essa tensão entre razão e emoção ao falar de produtos financeiros.

Posso explicar racionalmente, e o cliente pode compreender, que comprar uma cesta de fundos imobiliários é menos arriscado do que adquirir um único imóvel para investimento.

Ainda assim, não posso alterar o que ele sente ao ver, todos os dias, seu patrimônio sofrer marcação a mercado e oscilar. Conhecer o medo ajuda a suportá-lo, mas não significa que ele será eliminado.

Em Discurso do Método, publicado em 1637, René Descartes, um dos pais fundadores da ciência moderna, escreveu “Cogito, ergo sum” (“Penso, logo existo”). Para ele, a razão era a essência do ser humano, enquanto as emoções ocupavam um papel secundário.

Essa visão cartesiana influenciou não apenas a filosofia, mas também a forma como a ciência e a economia passaram a modelar o comportamento humano, como se fôssemos, antes de tudo, seres racionais.

Foi sobre esse princípio de racionalidade plena que se ergueu um dos pilares mais importantes da teoria financeira: as finanças modernas.

Markowitz, Modigliani e Miller, Sharpe e Fama redefiniram o entendimento sobre risco, retorno e eficiência dos mercados.

Markowitz mostrou que diversificação não é apenas prudência, mas consequência lógica da relação entre ativos imperfeitamente correlacionados. Modigliani e Miller defenderam a irrelevância dos dividendos frente à capacidade de investimento. Sharpe formalizou o CAPM, ligando retornos ao risco sistemático. Fama consolidou a hipótese de eficiência dos mercados, segundo a qual os preços refletem rapidamente as informações disponíveis.

Minha formação em finanças foi assentada nessa ideia de racionalidade do investidor e nas finanças modernas. Após o Plano Real, os bancos brasileiros notaram o renascimento do interesse dos investidores de varejo pelo mercado de ações, que havia praticamente desaparecido depois do crash da Bolsa brasileira em 1971.

Nessa época, criei um curso de três dias, com 24 horas de aula, sobre bolsa de valores. No primeiro dia, teoria; no segundo, um jogo em que os participantes gerenciavam uma carteira fictícia de ações por dez anos; no terceiro, reuníamos as dúvidas da teoria e da prática.

O curso foi um sucesso e, em menos de cinco anos, ministrei cerca de 150 turmas em todo o Brasil, além de dar aulas na UFSC. O resultado financeiro e a satisfação pessoal foram significativos, mas o excesso de trabalho cobrou seu preço.

Ao final de 1999, completamente exausto, precisei tomar uma decisão radical: suspender as turmas do ano seguinte. Como a palavra burnout não estava em uso corrente, aquilo parecia apenas maluquice ou irresponsabilidade.

Sem saber o que fazer, inscrevi-me em um doutorado. Queria estudar algo novo, abandonar o caminho que eu seguia. A inspiração veio da leitura do artigo “Irrationality: Rethinking Thinking”, na edição de 16 de dezembro de 1999 da revista The Economist, que começava com a provocativa pergunta: “Os economistas são humanos?”.

Conto do curso porque o cansaço extremo provavelmente me protegeu da dissonância cognitiva, o desconforto mental que sentimos quando crenças arraigadas entram em conflito com fatos. Em vez de rejeitar ideias que questionavam o pilar mais sólido da minha formação, decidi ouvi-las.

Foi assim que me aproximei do então nascente campo das finanças comportamentais, desenvolvido por Amos Tversky e Daniel Kahneman. Eles mostraram que decidimos por meio de heurísticas, os atalhos mentais que economizam esforço e geram vieses previsíveis.

Na teoria do prospecto, descreveram que avaliamos ganhos e perdas em relação a um ponto de referência, que a perda dói mais do que um ganho equivalente alegra e que nossa atitude frente ao risco muda conforme estamos em domínios de ganho ou de perda.

Antes de avaliar, ainda editamos as alternativas para simplificar a vida. É nesse momento que muitos erros entram silenciosamente. Essas ideias me levaram a defender a primeira tese na área de finanças comportamentais no Brasil.

A partir daqui, entro no coração das finanças comportamentais. Em vez de negar a racionalidade, elas a colocam no lugar certo. Se os modelos descrevem o mundo lá fora, os vieses descrevem o mundo aqui dentro, no próprio decisor humano.

O investidor não é uma calculadora perfeita. É um ser que alterna entre atalhos rápidos e análise cuidadosa. Daniel Kahneman chamou esses modos de pensar de rápido e devagar.

Gosto de traduzi-los como jacaré e Sr. Spock. O jacaré decide no impulso e quer gratificação imediata. O Sr. Spock pede tempo, dados e contexto. As finanças comportamentais partem dessa tensão e procuram descrever como de fato escolhemos e, sobretudo, como podemos escolher melhor.

A primeira chave está nas heurísticas, atalhos mentais que foram úteis para sobreviver em um mundo hostil.

Serviram para detectar ameaças, agir com pouca informação, poupar energia mental, seguir o grupo, priorizar o agora e evitar perdas. Esse modo rápido foi crucial para caçadores e caçados e ainda nos ajuda no cotidiano, quando não precisamos de planejamento para tarefas simples como escovar os dentes, por exemplo.

Em finanças, porém, esses atalhos geram erros sistemáticos ao lidar com preços e probabilidades. Três ganham destaque.

A ancoragem, quando fixamos a mente em um número e passamos a julgar tudo a partir dele. A disponibilidade, quando avaliamos riscos pelo que lembramos com facilidade, e não pelo que é mais provável. A representatividade, quando julgamos por semelhança e ignoramos a taxa-base. Em mercados, esses atalhos costumam nos colocar do lado errado da história.

A segunda chave é a teoria do prospecto.

Em vez de avaliar ganhos e perdas de forma absoluta, fazemos isso em relação a um ponto de referência. Perder dói mais do que ganhar alegra. A sensibilidade diminui conforme nos afastamos desse ponto.

Em ganhos, evitamos risco. Em perdas, buscamos risco para tentar voltar ao zero. Antes de avaliar, ainda editamos as alternativas para simplificar a decisão, e é aí que muitos erros se infiltram.

Quando aplicamos esse esquema ao mercado, surgem padrões que qualquer investidor reconhece.

O efeito de disposição é o mais conhecido. Vendemos rápido o que sobe pouco e mantemos por tempo demais o que cai muito. É a aversão à perda nos empurrando para a falsa ideia de que só falta um pouco para voltar ao preço de compra. Os custos afundados reforçam essa armadilha. Decidimos com base no que já gastamos e não no valor futuro esperado. O investidor aumenta a posição perdedora para reduzir o preço médio e termina concentrado no ativo errado. Foi o que aconteceu com milhares de pequenos investidores durante a derrocada das empresas X.

Há ainda os vieses que inflacionam a autoconfiança. O excesso de confiança nos faz superestimar a precisão das próprias previsões e subestimar o papel do acaso. O viés de confirmação nos leva a buscar apenas evidências favoráveis à nossa tese. A recência faz o último evento parecer regra.

O comportamento de manada seduz com a falsa segurança do grupo. Tudo isso ocorre sem que o investidor perceba que o jacaré tomou o manche e não deu tempo ao Sr. Spock.

Quando comecei a estudar finanças comportamentais, sonhei que poderíamos criar modelos descritivos capazes de explicar plenamente o funcionamento dos mercados e, assim, derrubar a hipótese de eficiência. Hoje entendo que isso não vai acontecer.

As bases e as recomendações de diversificação na fronteira eficiente continuam sólidas. A ideia de que é difícil bater o mercado por longo tempo permanece válida. A diversificação como resposta racional ao risco continua central.

Se as finanças comportamentais não se tornaram um modelo descritivo de como os mercados funcionam, elas têm um caminho brilhante na área prescritiva. Ajudam a nós e aos nossos clientes a tomar melhores decisões financeiras. O foco se desloca para o elo mais frágil do sistema, que somos nós.

Se conhecemos os pontos fracos, podemos desenhar o ambiente para que o Sr. Spock participe mais das decisões importantes. O primeiro passo é escrever uma política de investimentos simples. Ela deve definir objetivos, horizonte, alocação por classes, bandas de tolerância e regras de rebalanceamento.

O segundo passo é automatizar o que for possível. Aportes no dia do salário, reinvestimento de proventos e rebalanceamentos por calendário reduzem espaço para impulsos. O terceiro passo é manter custos baixos e diversificação real.

Esse é um ponto em que o modelo fee based da Warren mostra sua vantagem prática. Quanto mais complexo e opaco é um produto financeiro, maiores tendem a ser os custos de gestão e as comissões de venda. Ao eliminar comissões por produto e unificar a remuneração, cria-se um alinhamento simples entre assessor e investidor.

A conversa deixa de ser sobre prateleira e passa a ser sobre objetivos, alocação e processo. Isso abre espaço para o assessor identificar quando vieses e atalhos mentais estão tirando o cliente do caminho e recolocá-lo na construção paciente de riqueza.

Volto ao medo do avião. Saber que ele existe não o elimina, mas permite suportar melhor as turbulências. Em finanças, é a mesma coisa. Reconhecer os vieses não remove a emoção. Ensina a construir trilhos para que, mesmo quando o coração acelera, a carteira continue na direção certa. É colocar o jacaré e o Sr. Spock para trabalhar juntos.

Para encerrar, vale lembrar o diálogo com a neurociência proposto por António Damásio em O Erro de Descartes. Se Descartes separou mente e corpo, razão e emoção, Damásio mostrou que essa divisão é ilusória. Emoções participam das escolhas mais racionais. A boa decisão depende de um circuito no qual sentir e pensar caminham juntos.

Em finanças, isso significa assumir que nunca seremos máquinas frias. Em vez de tentar expulsar a emoção, devemos integrá-la a um processo que a reconhece, a dá nome e a enquadra. É assim que transformamos a tensão entre medo e cálculo em disciplina a serviço dos objetivos.

Quer se aprofundar em finanças comportamentais? Leia outros artigos de Jurandir Sell na Warren Magazine.

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